A partir da pré-adolescência, talvez a idade de onze ou doze, eu sabia que quando crescesse deveria ser uma escritora. Entre as idades de cerca de dezenove anos e vinte e quatro escrevi um livro à mão. Algumas pessoas próximas leram o meu esboço. O escárnio sobre meu trabalho embotou minha criatividade. Essa ideia deu lugar à necessidade de fazer faculdade, mas eu fiz isso com a consciência de que eu estava violentando a minha verdadeira natureza e que, mais cedo ou mais tarde, quando me estabelecesse na vida iria escrever livros.
Eu era a segunda filha de cinco irmãos. Éramos uma escadinha de dois a dois anos e meio de intervalo entre cada um. Eu mal pude ter meu pai. Ele morreu aos quarenta e nove anos, quando eu já estava com dez para onze anos. Entretanto, foi ele quem me despertou para a leitura. Todos os dias os filhos eram chamados de um a um, após tomarem banho, para entrar naquele lugar sagrado: a biblioteca do meu pai. Comecei com Monteiro Lobato. Esse hábito caminha comigo. Por esta e outras razões que eu era um pouco solitária. Desenvolvi peculiaridades desagradáveis, causando meu isolamento ao longo dos tempos de escola. Eu tinha o hábito da criança solitária, inventar histórias e manter conversas com pessoas imaginárias.
Acredito que desde o começo minhas ambições literárias estavam misturadas com o sentimento de ser isolada e desvalorizada. Eu sabia que tinha uma facilidade com as palavras e um poder de enfrentar fatos desagradáveis, e senti que isto criou uma espécie de mundo particular no qual eu poderia dar a volta no meu fracasso na vida cotidiana. No entanto, o volume de escritos que eu produzi por toda a minha infância e adolescência não equivaleria a uma meia dúzia de páginas.
Escrevi meu primeiro poema com a idade de treze anos. Meu professor de português da quarta série ginasial resolveu ler aquele poema em sala de aula. Meu rosto ficou rubro. Pensei que ia desmaiar quando meus colegas descobrissem que aquilo era obra minha. Antes de qualquer reação dos colegas o professor disse que o poema era de minha lavra. Achei o termo muito bonito. O próximo poema constaria aquele termo. A sala toda se voltou para mim. O rosto queimava. Aqueles versos foram escritos em razão de uma paixonite da adolescente por um rapaz de vinte e quatro anos. Um engenheiro chegado à cidade para trabalhar nas Indústrias Klabin do Paraná. Meu segredo estava descoberto. Todos saberiam de meus sentimentos. Quis desaparecer. Mas, a sala toda aplaudia minha composição. Conseguiram uma risadinha sem graça da minha pessoa e um obrigado, que saiu num sopro.
No entanto, durante todo este tempo me envolvi em atividades literárias. Para começar, escrevi um material encomendado pela Escola Normal, onde estudava, e produzi de forma rápida, fácil e sem muito prazer para mim, um esquete. Minha mãe, professora da escola, dirigiu. Fiquei de fora, claro. Eu sabia escrever, não encenar. Foi apresentado no festival de final do ano que acontecia em nossa pequena localidade. Festival, aliás, que ocorria todos os anos, com premiações às melhores apresentações. Ganhamos naquele ano e em outros. Além do trabalho da escola, eu escrevi na ocasião, poemas, contos e crônicas satíricas. Aquilo conseguia me dar fôlego para sair do redemoinho em que me metera. Parece-me agora uma velocidade surpreendente – aos treze anos eu escrevi um poema de rimas, em imitação de Olavo Bilac. No ano seguinte, criava esquetes para a escola. Mas lado a lado de tudo isso, há trinta anos ou mais, eu estava realizando um exercício literário de um tipo bem diferente: era a composição de uma “história” contínua sobre mim, uma espécie de diário que só existia na minha mente . Acredito que este é um hábito comum em crianças, adolescente e adulto solitário.
Como uma criança muito pequena eu costumava imaginar que era, digamos, uma astronauta, singrando o espaço infinito e me imaginava a heroína de aventuras emocionantes, mas muito em breve a minha “história” deixou de ser narcisista de uma maneira crua e tornou-se cada vez mais uma mera descrição do que eu estava fazendo e as coisas que eu via. Por horas esse tipo de coisa seguia em minha cabeça: “Ele abriu a porta e entrou na nave. Um feixe de luz solar amarela, filtrado através da janela, inclinado sobre a mesa, onde uma caixa de metal, jazia ao lado do alimento processado. Com a mão direita no bolso, mudou-se em direção à janela”, etc. etc. Este hábito continuou até que chegar aos cinquenta e seis anos. Direitos adquiridos após meus anos não literários e uma aposentadoria precoce. Apesar disso, tive que fazer pesquisa, encontrar as palavras certas. Parecia estar fazendo este esforço descritivo quase contra a minha vontade, sob uma espécie de compulsão de fora. A “história” deve, suponho, ter refletido os estilos dos vários escritores que eu admirava em diferentes idades, mas tanto quanto eu me lembro sempre tinha a mesma qualidade descritiva e meticulosa.
Comecei, de repente, descobrir a alegria das palavras em seu real contexto. As metáforas. Essa figura de linguagem onde se usa uma palavra ou uma expressão em um sentido que não é muito comum, revelando uma relação de semelhança entre dois termos.
Agora tudo me parece maravilhoso, causa arrepios na minha espinha dorsal. Estudar ortografia é um prazer adicional. Quanto à necessidade de descrever as coisas, eu sei meu caminho. Por isso, é claro que tipo de livros eu quero escrever, na medida em que eu posso dizer que sou escritora. Escrevo romance psicológico e de suspense com finais inusitados, cheios de descrições detalhadas. Se prende a atenção do leitor? Não sei. Meu público leitor vem crescendo.
Dou toda esta informação de fundo, porque não acho que se possam avaliar os motivos de um escritor sem saber algo de seu desenvolvimento inicial. Seu assunto será determinado pela idade em que vive – pelo menos isso é verdade em tempos tumultuosos como o nosso -, mas antes que você comece a escrever, se é isso que quer, terá adquirido uma atitude emocional de que nunca vai escapar completamente. É o seu trabalho, sem dúvida, para disciplinar o seu temperamento e evitar ficar preso em algum estágio imaturo, em algum estado de espírito perverso; mas se escapar de suas primeiras influências por completo, terá matado o impulso de escrever. Pondo de lado a necessidade de ganhar a vida, acho que existem grandes motivos para a escrita. Eles existem em diferentes graus em cada escritor, e, em qualquer escritor as proporções podem variar de tempos em tempos, de acordo com o ambiente em que vive.
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