by André J. Gomes |
Eu sou desses meninos que não conviveram com os avôs. Nem o paterno e nem o materno. Eu não os conheci. Meu pai nunca teve pai e o pai de minha mãe, um português fabuloso chamado Aníbal dos Santos, se foi desse mundo poucos dias depois de minha avó materna, Dona Olga, quando eu ainda era um bebê.
Segundo conta a minha mãe, meu avô nunca ficava doente. Morreu de tristeza com a partida do único amor de sua vida. Tiveram sete filhos. Seu Aníbal foi um homem muito doido. Quando era bebê, na cidadela de Loulé, em Portugal, região do Algarve, a madrasta dele o deixou tomando sol numa bacia no quintal e uma galinha, galinha mesmo, de pena e ovos, que habitava por ali bicou-lhe um dos olhinhos e o fez cego de uma das vistas para sempre.
Um dia, só Deus sabe quando, eu serei vegetariano e feliz. Um dia. Mas mesmo quando esse dia chegar, quando os bifes e filés e churrascarias não mais me interessarem, eu nunca vou deixar de comer frango. Por pura e assumida vingança, uma galinha sempre haverá de padecer no meu prato. Onde já se viu furar o olho do meu avô? Que história é essa?
Seu Aníbal tem sido fartamente vingado desde que eu ouvi esse caso pela primeira vez, entre tantas outras aventuras que minha mãe e meus tios me contaram, os olhos cheios de lágrima e saudade.
Uma delas me fez saber que, aos dez anos de idade, meu avô fugiu de casa, da madrasta e das galinhas, e se enfiou clandestino num navio. Veio parar aqui no Porto de Santos, enfermo de todas as doenças possíveis. No único documento dele que minha família mantém, uma carteira de trabalho, está marcado “filiação: desconhecida”. Com dez anos, meu avô mudou sua história sozinho. Apagou o passado e construiu vida nova em outro país.
Mas, enfim, quando ele se foi eu era tão pequeno que não me lembro dele. Assim como ele também não devia se lembrar do dia em que a galinha perfurou-lhe o olho. Então, eu nunca convivi com meus avôs. Nem o pai do meu pai e nem o pai de minha mãe.
Em compensação, tive na infância uma bisavó e uma avó paternas que cobriram toda e qualquer falta. Minha bisavó, Benedita Rosa, a Vó Bidita, foi minha primeira amiga de infância. Foi ela quem inventou o amor. Hoje é a asa direita e os olhos do meu anjo da guarda.
A filha dela, minha avó Irene, mãe e pai do meu pai, me deu um chocolate branco numa tarde que já vai longe e eu descobri a sensação da surpresa boa dos presentes simples. Dona Irene tem hoje 89 anos e lembra de tudo isso.
Agora, ainda assim, apesar do amor das minhas avós que jamais me faltou, eu passei um bom tempo da infância escolhendo velhinhos para serem meus avôs. Vizinhos, parentes, desconhecidos. Eu escolhia um sujeito idoso e contava para mim mesmo, assim no pensamento, que aquele era o meu avô. Pronto. Passava horas imaginando cenas em que ele e eu fazíamos as coisas que avôs e netos fazem juntos. Coisas de uma criança carente de avô.
Pois o último sujeito que escolhi para ser o meu avô foi o Rubem Alves. Leio seus escritos imaginando que cada palavra está sendo dita pelo avô que eu nunca tive. Leio como se ouvisse conselhos do meu velho avô, um homem que no meu mundo de fantasia gosta de plantas e de caqui e de ipês amarelos. Quando o via falando bonito na televisão, pensava comigo mesmo: “esse vovô tem cada uma”.
Agora, com a partida dele, me sinto tocado por um sentimento que eu desconhecia: a do luto por meu avô. A incrível e arrebatadora sensação da perda de um parente próximo que me faltará. Sem nunca ter sabido, o velho Rubem deu vida ao meu desejo fantasioso de ter um avô. E fez isso muito bem, como tudo o que ele plantou, floresceu e colheu na vida.
Vá em paz, doce homem do jardim. Obrigado, meu querido e escolhido vovô.
publicado na revista Bula
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